Pedro Gonçalves, de 'ranhoso' a ‘gajo’ porreiro
'Hat trick' é o espaço de opinião semanal do jornalista Paulo Cunha
Na terça-feira à noite, dia de folga, quando estava em mais um treino intensivo daquela modalidade olímpica chamada zapping televisivo, passei pelo Canal 11 e fiz uma pausa para descansar o polegar assim que me apercebi da presença de Pedro Gonçalves no programa Futebol Total. Caçar sem saber a presa que se procura é a essência de saltar de canal em canal na expectativa de que algo cative a nossa atenção. Ora, um jogador do Sporting – o espanto seria o mesmo se o protagonista fosse de Benfica ou FC Porto – decidido a dar uma entrevista sem os lugares comuns tantas vezes impingidos pela comunicação dos clubes é uma raridade que justifica encostar o comando às boxes.
Noutros tempos, a partir do fim das hostilidades nos relvados, por esta altura e até ao início de julho, os jornalistas acompanhavam os futebolistas, sobretudo rumo ao Algarve, e sucediam-se entrevistas de balanço de temporada com cheiro a maresia. De norte a sul do país, às vezes no estrangeiro, os artistas davam-se a conhecer, congratulavam-se com os êxitos, explicavam-se, esclareciam mal-entendidos, acertavam contas com treinadores, dirigentes ou companheiros. É preciso ter noção de que as palavras deixam marcas, compreendo que a gestão da comunicação com a pressão das redes sociais sempre a pairar não é fácil. Mas fazer dos atores principais quase paus mandados sem atributos para interagirem com os adeptos é demasiado redutor.
Em outubro de 2014, estive em Valência a entrevistar André Gomes – juntamente com o Miguel Nunes, repórter fotográfico, e o grande Pereira Ramos, correspondente de A BOLA em Espanha há mais de 50 anos. O médio acabara de trocar o Benfica, campeão nacional, pelo clube espanhol e destacou um admirável mundo novo que não se esgotava no encanto das quatro linhas de uma das melhores ligas do planeta ou nas condições financeiras de outro nível.
«Falei mais com os jornalistas numa semana no Valência do que em toda a minha carreira», confidenciou-nos então, solto de amarras, declaração de que me lembrei ao ouvir Pedro Gonçalves – tudo está bem quando acaba bem e é evidente que a conquista do título facilita discurso mais aberto e desempoeirado – abrir o livro no início da semana.
Se o recente Benfica-Sporting para a Liga (escrevo antes da final da Taça de Portugal) foi o jogo do século, Pedro Gonçalves proporcionou-nos a entrevista do ano pela autenticidade rara na abordagem de tantos temas potencialmente sensíveis para ele e para o Sporting.
A assunção de responsabilidades no pontapé mal dado numa bola que agravou lesão e adiou em três meses o regresso aos relvados, a relação de «amor-ódio, pai e filho» com Ruben Amorim e todo o contexto da saída do técnico para o Manchester United, a mudança de planos táticos de Rui Borges aconselhado pelo plantel, a forma como descreveu o ambiente no balneário, a importância de Hjulmand, o destino de Gyokeres que só conhece pelas informações de Fabrizio Romano, a emoção de voltar à Seleção, a garantia de que pensa como médio apesar de jogar na frente, a escolha do onze ideal dos leões entre o que festejou em 2021 e o atual, o mea culpa sorridente de que gosta de chatear os adversários e até inferniza a vida dos colegas se não lhe passam a bola...
Cada afirmação dava uma manchete, algo que só costuma acontecer quando o entrevistado decide desligar o piloto automático, esquecer o futebolês e mostrar que é de carne e osso.
Desde terça-feira à noite, aposto, até águias e dragões mudaram de opinião sobre Pedro Gonçalves, não obstante o trajeto de enorme sucesso nos verdes e brancos (197 partidas, 82 golos e 49 assistências). O ranhoso em campo – conforme costumam apelidar os próprios pares os jogadores com este perfil… – é agora o chamado gajo porreiro.